terça-feira, 30 de junho de 2015

São Paulo e a Espada - por Bento XVI

São Paulo, o combatente e o sofredor

Ao subir para a Basílica de São Pedro, colocou Pio IX, no século XIX, duas majestosas figuras do apóstolo Pedro e Paulo. Ambos se reconhecem pela sua simbólica: a chave nas mãos de Pedro, a espada nas mãos de Paulo.

1. A Espada de Paulo

1. Instrumento da sua execução: morreu pela espada
Quem não conhecer a história do cristianismo e observar esta figura vigorosa do apóstolo das gentes, podia chegar à conclusão que se tratava de algum general ou um guerreiro que tenha feito história com a espada para domi¬nar os povos. Seria mais um que ganhou fama e riqueza à custa de sangue derramado. O cristão sabe que a espada na mão deste homem tem um significado diferente: é o ins¬trumento da sua execução. Como cidadão romano, não podia ser crucificado como Pedro. Morreu pela espada. Mesmo que isso fosse considerado uma forma mais nobre de condenação à morte, na história da Igreja ele pertence às vítimas do poder e não aos carrascos.

2. A espada do seu combate
Quem aprofundar as cartas de Paulo, tentando encontrar nelas como que uma autobiografia escondida do Apóstolo, reconhecerá logo, que com o símbolo da espada, o instrumento da paixão, não se diz só algo sobre os últimos momentos da vida de São Paulo. A espada pode efectivamente caracterizar a sua vida toda: “Combati o bom combate”, diz ele no momento da morte a Timóteo, seu discípulo preferido, fazendo a retrospectiva da sua vida (2 Tim. 4,7).É por estas palavras que Paulo é descrito como um combatente, um homem de acção, uma natureza violenta. Uma observação superficial sobre a sua vida pode dar azo a este equívoco: Percorreu em quatro grandes viagens uma grande parte do mundo conhecido de então, tornando-se verdadeiramente o apóstolo das gentes, que levou o Evangelho de Jesus Cristo “até aos confins da terra”. Através das suas cartas procurou manter a unidade das comunidades que fundou, contribuir para o seu crescimento e cuidar da sua perseverança.Temperamental, soube enfrentar adversários que nunca lhe faltaram. Investiu todos os meios na “obrigação da evangelização que lhe foi imposta (I Cor. 9, 16), com a maior eficácia possível. Assim, será sempre apresentado como o grande activista, como patrono dos inventores das novas estratégias da pastoral e da missão. Esta visão não está errada, mas não é o Paulo total; na realidade, quem assim o vê, perde o essencial da sua figura.


2. A luta de um mártir

Em primeiro lugar, devemos insistir em que a luta de São Paulo nada tem a ver com a luta dum carreirista ou homem do poder, muito menos com a luta dum soberano ou conquistador. Trata-se da luta, tal como a descreve Teresa de Ávila. A sua expressão «Deus quer e ama almas apaixonadas», é comentada com esta frase: «A primeira coisa que o Senhor opera no coração dos seus amigos, quando eles se tornam fracos, é dar-lhes coragem e tirar-lhes o medo do sofrimento".A este propósito, lembro-me de uma observação, de certa forma unilateral, que Theodor Haeck deixou nos diários que escreveu durante a guerra; pelo menos pode ajudar-nos a compreender o que aqui se trata. A frase em causa é a seguinte: «Às vezes penso que o Vaticano esqueceu completamente que Pedro não foi só bispo de Roma... mas que também foi um mártir".A luta de São Paulo foi, desde o princípio, a luta de um mártir. Ou mais exactamente: No início do seu caminho pertenceu ao grupo dos perseguidores, usando da força contra os cristãos. A partir do momento da sua conversão, passou para o lado de Cristo crucificado, optando pelo caminho de Jesus Cristo.Não era um diplomata; sempre que tentou sê-lo, não teve muito êxito. Era um homem que não tinha outras armas, a não ser a mensagem de Jesus Cristo e a entrega da própria vida por esta mensagem. Já na Carta aos Filipenses escrevia que a sua vida seria oferecida como sacrifício (2:17); e no fim da sua vida, nas últimas palavras a Timóteo volta a esta mesma formulação.

3. A luta de um sofredor

Paulo era um homem preparado para o sofrimento, e isso era efectivamente a sua força. Nunca se poupou, nunca desistiu por dissabores ou desgostos, nem alguma vez almejou uma vida confortável.Muito pelo contrário. Exactamente porque se expunha, porque não se poupava e se entregava à luta e se gastava por causa do Evangelho. «Quanto a mim, de bom grado darei o que tenho e dar-me-ei a mim mesmo totalmente, em vosso favor.» Estas palavras da Segunda Carta aos cristãos de Coríntios (12, 15), revelam o mais íntimo deste homem.Paulo não pensava que o principal objectivo da pastoral era evitar os problemas. Também não pensava que um apóstolo tinha de ter uma boa imprensa. Não, ele queria despertar, incomodar o sono das consciências, mesmo que isso lhe custasse a vida. Pelas suas cartas sabemos que de maneira nenhuma se pode considerar um grande orador. Partilhou com Moisés e Jeremias a falta de jeito para a oratória. Perante Deus, ambos alegaram essa razão, para justificar a incapacidade para a missão que lhes era confiada. «As suas cartas... são duras e enérgicas, mas quando está presente é fraco e a sua palavra, desprezível» (2 Cor. 10,10), dizem os seus adversários. E sobre o início da sua missão na Galácia, diz ele mesmo: «Vós sabeis que eu estava fraco e doente quando vos anunciei o Evangelho pela primeira vez» (Gal. 10, 13). A acção de Paulo não dependeu da retórica brilhante ou de alguma estratégia refinada, mas da entrega e do compromisso com a mensagem.A Igreja, hoje, só conseguirá convencer os homens na medida em que os seus anunciadores estiverem dispostos para o sofrimento. Quando falta a disposição para o sofrimento, falta o essencial da prova da verdade, com que a Igreja se confronta. O seu combate só pode ser o combate daqueles que estão dispostos a dar-se totalmente: o combate dos mártires.

4. A espada da Palavra da verdade

Ao subir para a Basílica de São Pedro, colocou Pio IX, no século XIX, duas majestosas figuras do apóstolo Pedro e Paulo. Ambos se reconhecem pela sua simbólica: a chave nas mãos de Pedro, a espada nas mãos de Paulo.Para além do sinal de martírio, podemos acrescentar ainda um outro significado da espada nas mãos de São Paulo. Na Escritura a espada também é sinal da palavra de Deus, que «é viva, eficaz e mais penetrante que uma espada de dois gumes…, e discerne os sentimentos e intenções» (Heb 4, 12). Foi esta espada que Paulo levantou. Com ela conquistou os homens.A «Espada» é definitivamente uma imagem para o poder da verdade, que é de natureza específica. A verdade pode doer, pode ferir - corresponde à natureza da espada. A vida na mentira, ou, simplesmente, a vida à margem da verdade parece mais cómoda do que a exigência do verdadeiro. Por isso, os homens irritam-se por causa da verdade, desejam detê-la, oprimi-la, fugir-lhe do caminho.Quem pode negar que já alguma vez a verdade o tenha perturbado - a verdade sobre si mesmo, a verdade sobre o que devemos fazer ou deixar de fazer? Qual de nós pode afirmar que nunca tentou colocar-se à margem da verdade, ou não tentou ao menos adaptá-la a si, para que não fosse tão amarga? Paulo era incómodo, porque foi um homem da verdade. Quem se entrega totalmente à verdade e renuncia a qualquer outra arma ou actividade além dela, não será necessariamente condenado, mas andará muito próximo do martírio. Será sempre um sofredor. Proclamar a verdade, sem se tomar fanático nem justiceiro - esse será o grande compromisso. No auge dos conflitos, talvez Paulo, por vezes, se tomasse um pouco azedo, próximo do fanatismo. Mas nunca se tomou num fanático. Encontramos, nas suas cartas, textos cheios de bondade, sobretudo na Carta ao Filipenses, que revelam o seu verdadeiro carácter. Podia manter-se livre do fanatismo, porque não se anunciava a si mesmo, antes revelava aos homens os dons que Outro lhes trazia: a verdade que vem de Cristo, que por ela entregou a vida, amando até à morte.Também aqui, penso eu, devemos corrigir a imagem que temos de Paulo. Recordamos demasiado os textos combativos de Paulo. Algo semelhante acontece com a figura de Moisés: recordámos Moisés como homem inflamado, inacessível e irado. No entanto, o livro dos Números diz que Moisés «era um homem muito humilde» (Nm 12, 3).
Um leitor de todos os escritos de Paulo descobrirá um Paulo humilde.

5. Um combatente da verdade
Dissemos antes que o seu êxito dependeu da sua disponibilidade para o sofrimento. Efectivamente devemos dizer que sofrimento e verdade andam juntos. Paulo foi combativo, porque era um homem da verdade. Mas, aquilo que de duradoiro cresceu das suas palavras e da sua vida aconteceu, porque serviu a verdade e sofreu por ela. O sofrimento é garantia necessária da verdade. E só a verdade dá sentido ao sofrimento.

6. Pedro e Paulo, todo o evangelho
À entrada da Basílica de S. Pedro [à entrada do altar-mor desta Igreja] estão as duas estátuas dos apóstolos Pedro e Paulo. Também no portal principal da Basílica de S. Paulo extra-Muros estão os dois unidos entre si por cenas que representam a vida e o sofrimento dos dois. A tradição cristã contemplou, desde o princípio, Pedro e Paulo como inseparáveis entre si. Os dois representam todo o Evangelho.

7. Pedro e Paulo, a nova fraternidade evangélica
Em Roma esta relação dos dois, irmanados na mesma fé tem um significado acrescido. Os cristãos de Roma viam neles a imagem oposta aos dois míticos irmãos fundadores da cidade de Roma, Rómulo e Remo. Estes dois irmãos correspondem de forma estranha ao primeiro par de irmãos da história bíblica: Caim e Abel. Um tomou-se assassino do outro. Do ponto de vista meramente humano, a palavra fraternidade tem um sabor amargo. Como isso se revela entre os seres humanos, podemos verificar em vários pares de irmãos presentes em todas as religiões.Pedro e Paulo, humanamente muito diferentes um do outro, cujo relacionamento não foi isento de conflitos, aparecem como fundadores de uma nova cidade, como encarnação de um sentido novo de fraternidade, tomada possível através do Evangelho de Jesus Cristo.Não é a espada do conquistador que salva o mundo, mas a espada do sofredor. Só o seguimento de Jesus Cristo leva à nova fraternidade, à cidade nova. É esta a mensagem do par de irmãos, que nos é transmitida através das duas basílicas de Roma (Através da celebração comum com que unimos na mesma solenidade os apóstolos Pedro e Paulo).


Joseph Ratzinger
                                                                                                                                                                   

(IN CARDEAL RATZINGER – BENTO XVI, Esplendor da glória de Deus. Meditações para o ano litúrgico, Editorial Franciscana, Lisboa 2007.)

Fonte: Blog Chama do Carmo. (Portugal)

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